segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Na Masmorra II

Para ler a primeira parte clique aqui

1439 d.C.

No século XV a Europa ardia. O fogo católico queimava homens, mulheres, crianças e velhos. Bruxaria, heresia, assassinatos de padres ou clérigos da Igreja. Eram todos crimes que levavam à fogueira. Homens pregavam o evangelho à força, enfiando Deus na cabeça das pessoas por bem ou por mal, e mostrando que negar Cristo era uma péssima idéia. O Medo era maior que qualquer rei da Terra, pois seu reinado abraçava toda a Europa, e uma parte da África e também da misteriosa e mística Ásia.
Era uma época negra, como todos já sabem. Os exércitos da Igreja e seus Juízes levavam a Santa Inquisição a todos os cantos desta terra. Julgando e condenando inocentes e culpados, todos ao mesmo destino. O Livro da Lei era fresco ainda, ensinando a reconhecer os hereges e as bruxas, ensinando a torturá-los e ensinando como executá-los. Malleus Maleficarum espalhando sangue sobre todos. A vontade de Deus estava nas palavras de todos os padres, como também nas espadas de todos os cavaleiros que serviam à Santa Igreja Católica.
Aço e fogo, opressão e terror. Manter-se vivo era uma tarefa difícil e diária, que alguns conseguiam cumprir, mas a maioria queimava no mesmo fim.

Morte.

Há dois dias os gritos tinham cessado, mas na sua cabeça era como se ainda estivessem no ar, ecoando nas paredes de pedra lisa. Ecos de terror.
Era apenas uma menina, inocente perante o Mundo, pecadora aos olhos de Deus. Agora, era apenas um monte de ossos escuros e torrados, deixados ao pé da pira que um dia foi uma grande e ardente fogueira de morte.
O homem estava a muito naquela masmorra e o único raio de sol que entrava por uma fresta na parede à esquerda da grade, era tudo que via do dia.
Já não ficava mais preso às correntes. Um dia entraram na sua cela e tiraram os grilhões. O guarda nada disse além de um “mexa-se e eu te mato, velho herege!” e saiu com as correntes. E ele não podia negar, era bem melhor assim.
Tinha fome, apesar de ter acabado de comer um pedaço de pão preto e bolorento e meia caneca de cerveja azeda de velha. Era tudo que recebia de refeição, se é que isso podia ser chamado de refeição. O estomago roncava e reclamava da fome, e a nuca doía por uma noite mal dormida, mas, quem dorme bem em uma cela numa masmorra escura, esperando pela própria morte?
Ele tinha o pensamento longe. E os malditos gritos da menina insistiam em ecoar nos seus ouvidos. Ela não merecia sofrer tanto. Mas pensar na garota não aliviaria a sua morte, então era melhor pensar na própria morte.
Estava absorto nesse conflito interno quando a tranca da porta da masmorra rangeu assim que a chave entrou no buraco. O ferro gritou e as dobradiças da grande e pesada porta de carvalho reclamaram ao serem usadas.  A porta se abriu por inteira.
O chão forrado de palha da masmorra chiou por causa dos passos que vinham em direção à cela do homem. Era noite, por isso a escuridão era total, o que explicava o archote aceso na mão do homem que entrava. Estava acompanhado de dois guardas que vinham atrás dele. A cela do cativo ficava no fim de um corredor cercado de outras celas, todas vazias, e os três homens se aproximavam rapidamente.
 Vieram me buscar. Minha fogueira já está preparada e eles vieram me buscar. Chegou a hora. Pensou o homem na cela, quando os três homens pararam na frente das grades.
- Tem nome, assassino? – Perguntou o homem que vinha à frente dos guardas, passando o archote pra um deles.
O cativo observou o homem. Botas pretas de viagem, sujas de barro e talvez sangue. Vestia uma calça de algodão preta muito surrada, um colete de lã também preto por cima de uma camisa de algodão preta, o frio obrigava-o a usar um manto de feltro preto e sujo.
Naqueles dias, existiam dois tipos de padres. Existiam os padres de igreja, que temiam abandonar a proteção das paredes de seus templos e igrejas, que preferiam o calor de uma lareira no inverno e a fartura de comida, por isso eram quase sempre os padres mais gordos. E haviam os padres destemidos, que enfrentavam batalhas e sabiam muito bem como usar uma espada. Eram os Padres Missionários, que viajavam por toda esta terra, espalhando a palavra de Deus e a vontade da Igreja. E o prisioneiro, no momento que viu o adorno branco no pescoço daquele homem, percebeu que aquele era um Padre Missionário treinado no Vaticano.
- Costumavam me chamar de Levi, padre.
O padre apoiou os dois braços na barra transversal da grade.
- Levi... Nome de um dos servos de Deus.
- Com certeza não sou servo nenhum de Deus. – O cativo deu uma fungada de escárnio.
O padre ignorou a ironia do prisioneiro. Virou para um dos guardas que estava com o molho de chaves e com um gesto, mandou que ele abrisse a cela. O guarda hesitou por um instante, mas após um olhar de insistência do Padre Missionário ele obedeceu. Levi estava sentado na parede oposta à grade e no momento que o guarda abriu o portão, ele apenas ergueu a cabeça pra observar o padre entrar.
- Se tentar alguma coisa eu abro sua garganta, verme! – Trovejou o guarda do archote, que tinha uma espada curta na cintura.
- Mataria mais rápido que o fogo, com certeza. – disse o padre sorrindo.  
O homem de Deus era um dos maiores padres que Levi já tinha visto. Ombros largos e braços fortes, um rosto marcado pela meia-idade e também por alguns cortes, provenientes de algumas batalhas, com certeza. E o padre sentou-se na parede à direita da grade, olhando nos olhos de Levi.
- Olhando nos seus olhos não consigo imaginar o que o levou a matar um padre... Ainda mais de uma forma tão cruel. Poderia me dizer o que o motivou a ser tão brutal, Levi?
O preso devolveu o olhar. Chegou a hora, vão me levar ao fogo.
- Matei um padre de uma forma vil e sanguinária, sim matei mesmo. Diga-me Padre Missionário, o senhor também tem um nome?
- Altair. – Disse o padre, remexendo na palha do chão. Pegou uma e enfiou na boca, como se estivesse mascando um pedaço de fumo qualquer.
- Padre Altair, missionário de Deus, diga-me, quando é que os padres começaram a estuprar e matar esposas de camponeses e a mutilar seus filhos, ao invés de pregar a palavra de Deus aos ímpios?
Levi tinha um pequeno tom de fúria na voz. Mas o padre estava calmo como um lago no verão.
- Nem todos os padres são assim. Mas, padres ainda são homens carnais, mesmo os servos de Deus. Estamos todos sujeitos aos desejos e crueldades da carne, Levi. E talvez o padre que violou sua mulher não fosse forte o suficiente para ser um homem de Deus.
- Violou e matou-a. E deixou meu filho com um braço a menos. – Levi encarava o padre nos olhos. Estava calmo novamente, a fúria e o ódio estavam restritos apenas ao seu olhar agora. – O maldito padre esperou que eu saísse para caçar. Arrombou a porta da minha casa, indo direto atrás da minha mulher. Meu pequeno filho, que viu apenas sete primaveras tentou defendê-la, mas o padre tinha uma pequena espada e decepou o braço do garoto. Assim, ficou livre e teve o tempo que quis pra fazer tudo que tinha que fazer com minha esposa e no fim, apenas por prazer, abriu a garganta dela, fazendo o sangue escorrer sobre meu filho. – Os punhos de Levi estavam cerrados e apenas uma lágrima escorria pela face esquerda. – Irei queimar na fogueira por vingar minha família, padre. Mas se eu não tivesse matado aquele desgraçado, ele não sofreria punição nenhuma.
Padre Altair cuspiu a palha, com uma grande quantidade de saliva. Pegou outra palha do chão, e começou a mordê-la por uma ponta.
- Ele teria a justiça divina, o julgamento de Deus. Deus é justo Levi. E este homem queimará na fogueira do Inferno, que é mil vezes mais ardente do que o fogo dos homens.
- Foda-se o Inferno, padre. Tive o sangue dele em minhas mãos, estou feliz por isso. Vi o terror nos olhos daquele padre gordo. O medo de morrer, o pavor da dor e ouvi seus gritos e súplicas. Pouco me importa onde ele está agora, o que me importa é a vingança e isso, ah isso eu consegui.
A ira de Levi aumentava, mas de uma forma contida. Os nós dos dedos estavam muito brancos, de tanta força que fazia pra cerrar os punhos. Suas unhas compridas cravavam-se nas palmas das mãos, e filetes de sangue escorriam delas. Sangue fresco sujava mais ainda suas mãos. Chegou a hora.
O padre olhou-o com olhos de piedade, porém tinha dureza na voz:
- Sua ira entristece a Deus. E sua crueldade faz o Espírito Santo chorar, Levi. Ainda há tempo para se arrepender diante do Pai. Sua morte é certa, mas seu destino pode ser alterado ainda. Arrependa-se dos seus atos passados. Eles não fizeram de você um homem melhor e nem nunca irão fazer. Jesus tem as mãos estendidas a você, estenda as suas a ele.
A expressão do prisioneiro era de puro escárnio e desprezo. Relaxou por um momento as mãos, só para limpar, com a palma da mão direita, um suor que escorria pela sua testa. Sangue e suor fundiram-se. Chegou a hora.
- Mãos de Jesus, a tristeza de Deus, o choro do Espírito Santo. Conversar sobre o nada, padre. São seres de vento. Um Deus que é tão invisível quanto o ar. Que fecha os olhos aos seus supostos filhos. Diga-me, Padre Altair, porque seu Deus de ar virou as costas à minha mulher e ao meu filho, quando eles mais precisaram dele? Onde estava o Santo Espírito? E as mãos de Jesus, porque não impediram que aquele maldito padre enfiasse ambas as espadas no corpo da minha esposa?
Um fio de saliva escorria da boca de Levi. Seu ódio se manifestava cada vez com mais força. E o Padre Missionário percebeu. Lançou um longo olhar pro teto da cela, suspirou uma vez e sem tirar os olhos do teto respondeu:
- Nós homens, pecadores desde o nascimento, nunca iremos entender a vontade de Deus. Mas acredite quando eu lhe digo Levi, você não pode vê-lo, mas ele vê você e ouve suas palavras. – O padre baixou os olhos para Levi. - Agora mesmo ele está aqui, posso sentir e ele deseja que você se arrependa dos seus pecados e atos da carne. E quando você morrer, Jesus te guiará ao caminho do Paraíso, pra se sentar ao lado do Pai. Arrependa-se. É isso que ele tem a te dizer. A salvação está à sua escolha. A minha boca fala pela boca de Deus Levi. Arrependa-se e viva eternamente no Paraíso de Deus.
O padre tinha olhos vivos em Levi. Os guardas esperavam pacientemente fora da cela, mas o archote começava a se apagar. Um vento gelado entrava pela porta da masmorra e o guarda que segurava o molho de chaves bocejou uma vez. Foi quando Levi percebeu que um fio de luz entrava pelo buraco da parede. Estava amanhecendo. E naquele momento Levi soube que seria o ultimo amanhecer que veria. Chegou a hora.
- Eu cago na vontade de Deus, Padre Missionário Altair. – Ódio, o mais puro e legítimo ódio dominava o coração de Levi. O padre se remexeu, desgostoso com o insulto.  – Ou será que a vontade dele seja que eu levante agora e arranque seus dois olhos de padre fora do seu crânio? Poderia queimá-los comigo no fogo da Igreja. O que acha dessa vontade de Deus, padre?
A ultima palavra foi dita com o máximo de desprezo que Levi conseguia aplicar, seguida de uma cusparada na direção do padre. Sem força suficiente para acertar o alvo.
- Nega a Deus Levi? - Disse o homem de Deus.
- Com todas as minhas forças, porco da cruz!
O Padre Altair se levantou, com uma ligeira impaciência. Disse:
- Deus ofereceu o perdão. E você o ignorou e desrespeitou. Só lhe resta pedir piedade no Inferno. Guardas levem-no!
O padre pegou o archote quase apagado com o guarda, e o outro guardou o molho de chaves no cinto. Dois pares de braços fortes o pegaram e torceram os pulsos de Levi pra trás do seu corpo, levantando-o. Suas pernas estavam fracas e ele tinha perdido a pratica de andar, mas os guardas tinham mãos firmes que o obrigavam a acompanhar o ritmo deles. Iam em direção à porta da masmorra. O Padre Missionário vinha logo atrás, com passos decididos que estralava a palha. O vento frio penetrava no corpo fraco e sujo de Levi, cortando como adagas. A porta chegava rápido e o frio e a ansiedade aumentavam. O dia nascia na terra, nascia para que Levi morresse. A lembrança da sua mulher e de seu filho inundaram sua mente. As risadas nos verões e as flores na primavera. Flores. Levi não se lembrava do cheiro de nenhuma delas. E a porta estava próxima. Chegou a hora. Lembrou-se do rosto da pequena menina bruxa e as lágrimas que ela havia chorado dois dias antes, os gritos voltaram a ecoar e o cheiro de carne queimada voltou a visitar suas narinas, teve náuseas. Só percebeu que estava com os olhos fechados quando eles se abriram. E um clarão o cegou. Dias e dias sem nenhuma luz a não ser um filete de sol, pela brecha na parede. Assim que cruzou a porta um clarão queimou seus olhos, mas o sol ainda não havia subido do horizonte.
O ultimo amanhecer de Levi, não foi iluminado pelo sol, mas pelo fogo.
Chegou a hora.
E o dia amanheceu para Levi arder.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Campos

O papel branco estende-se a minha frente, ficando cada vez mais alvo, a cada olhar mais vazio, sem sentimentos, desafiando uma pessoa capaz de preenchê-lo. E um dia eu pensei ser capaz. Um dia cruzei oceanos e movi montanhas apenas com alguns rabiscos numa folha branca, como esta que me encara com olhos vazios, inexpressivos. Mas hoje não. Hoje os oceanos me barram. Hoje as montanhas têm o dobro do seu tamanho. E as minhas mãos não se movem em cima da mesa.
Já escrevi sobre sentimentos; amor, ódio, esperança e arrependimento. Já escrevi sobre fantasias, homens de honra, já criei deuses e rainhas. Mas hoje meus punhos estão cerrados em agonia.

No âmago é a revolta que cresce. E o medo de perder minha única esperança. Perder minha única e duvidosa qualidade. Medo de não conseguir construir o mundo dos sonhos, o meu mundo dos sonhos. Enterrado por toneladas de vazio. Isso mesmo, toneladas de nada. Amputando minha mente, congelando minha criatividade.
Nem o dia cinza, nem a chuva forte, nem o frio muito menos o calor...são fatores que não alteram um quadro grave, que, temo eu, seja irreversível.

Preciso parar.

Uma onda parece se levantar, para tragar tudo aquilo que eu desejei ser. 
E de todos os lados surgem as vozes.

Mil vozes.
Mil mentiras.

Só me resta saber se a sua voz é uma delas.
Pois a minha berra em desespero.
Mentindo para o meu coração.
Enganando a minha esperança.

Fugindo ao meu alcance as palavras correm e voam daqui.
Plainando sob as nuvens, buscando campos melhores que esse.
Buscando quem as dê mais valor.
Pois em minhas mãos elas não têm mais serventia. São coadjuvantes de uma mente perdida.
Vazia.